Ex-líder do exército turco foi ontem condenado a prisão perpétua por tentar derrubar Erdogan

06/08/2013 06:50

O general Ilker Basbug (ao centro à direita) foi condenado a perpétua por tentar derrubar Erdogan (esquerda)

Os avanços de ontem no julgamento de dirigentes turcos por alegada conspiração para derrubar o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) relançaram no país um debate de contornos mitológicos: afinal o caso Ergenekon, que após cinco anos de investigações viu ontem serem ditadas as primeiras sentenças, é uma farsa ou uma conspiração?

O processo foi baptizado em honra do famoso local da mitologia turca, Ergenekon, nome dado a um alegado grupo ultranacionalista da Turquia que pretende derrubar governos democraticamente eleitos. Ontem, um punhado de líderes de entre os 300 acusados, incluindo políticos, advogados, jornalistas, empresários, professores universitários e militares, foram condenados a prisão perpétua, entre eles o ex-chefe do Estado-Maior do Exército turco (2008-2010), o general Ilker Basbug, que se declarou inocente de todas as acusações.

Do total de réus julgados por um plano para derrubar o governo do primeiro-ministro Recep Tayyp Erdogan, 21 foram absolvidos e 40 condenados até agora, entre eles um jornalista e um agente da polícia. O Ministério Público pedia perpétua para Basbug e outros 64 acusados, entre eles nove generais.

Nos últimos cinco anos, alguns dos acusados têm estado detidos por longos períodos à espera de julgamento, com as suas equipas de defesa a alegarem que as provas reunidas contra eles são duvidosas e com inúmeras ONG a questionarem a forma como o caso tem estado a ser conduzido.

O tribunal especial criado na prisão de alta segurança de Silivri, poucos quilómetros a oeste de Istambul, para estes julgamentos ditou acusações que vão de ser membro da rede Ergenekon a possuir armamento e instigar uma revolução armada contra o AKP. Baseado na crença de que existe um "estado profundo" enraizado na sociedade turca - uma aliança secreta cujos objectivos são aniquilar elementos da elite cultural e política da Turquia, semear o caos para justificar acções militares e derrubar o executivo de Erdogan - o caso tem gerado tanto aplausos como críticas.

"Na Turquia", explicava ontem à "Euronews" Hande Ozhabes, "a impunidade dos que servem o Estado, particularmente as forças de segurança, tornou-se norma, especialmente nos assassinatos políticos, pessoas que desapareciam depois de terem sido presas." Perante isto, alega o analista da Fundação Turca de Estudos Económicos e Sociais, "o caso Ergenekon pode ser visto como uma primeira tentativa de levar a tribunal crimes cometidos pelo Estado e a violação de direitos humanos por estes agentes".

Caça aos secularistas? Ozhabes não é o único a ver justiça ser feita em teoria, com o argumento de que as forças armadas turcas têm tido demasiado peso e influência na política do país secular nas últimas décadas (levaram a cabo três golpes militares entre 1960 e 1980). Na quinta-feira, o primeiro-ministro e líder do AKP, de tendência islamita, sublinhava precisamente isso. "Estamos a mostrar uma atitude firme e corajosa para que possamos defender o nosso país da perseguição de mafiosos e bandidos", disse Erdogan, sublinhando que ninguém está acima da lei.

A declaração surgiu em jeito de resposta aos inúmeros críticos que vêem no caso uma tentativa clara de Erdogan de afastar uma série de opositores ao AKP. Nedim Sener, escritor e jornalista de investigação do país, tem sido um dos grandes críticos da manobra. Em Março de 2011 foi detido e mantido na prisão durante um ano sem acusações formais por alegadamente pertencer à Ergenekon. "As provas contra nós são simplesmente sermos escritores e ajudarmos outros na sua escrita", disse à "Deutsche Welle". "A verdadeira razão para me prenderem foi a minha investigação ao homicídio de Hrant Dink e os meus livros sobre isso." Os agentes da polícia que investigaram a morte do jornalista arménio em 2007 "estão agora a liderar a investigação ao Ergenekon", denuncia Sener.

O jornalista turco vai mais longe na revelação da farsa, referindo o homicídio do padre católico Don Santoro, morto na sua igreja em 2006, numa tentativa de indicar que há algumas provas que ligam o governo à rede e que mortes recentes como essa podem ter sido orquestradas pelo partido de Erdogan para justificar esta caça aos secularistas. "Os perpetradores e aqueles que planearam e lideraram homicídios como esse são todos empregados do Estado, alguns deles políticos. [O Ergenekon] não será lembrado por expor o estado profundo, mas por destruir a oposição ao AKP."

Como Sener, também Hüseyin Ersöz defende que este processo é politicamente motivado. O advogado de defesa de dois dos acusados - Tuncay Özkan, jornalista, e Mustafa Levent Götkas, advogado e ex-sargento do exército - diz que ambos foram acusados de pertença a organização terrorista com base em documentos digitais obscuros. "São documentos sem assinatura, que podem ser atribuídos a qualquer pessoa. Götkas, por exemplo, foi indiciado com base num CD encontrado no seu escritório, que se partiu quando a polícia o confiscou. Está portanto a ser julgado com base num CD que está agora inutilizado e que ele diz que nem sequer é dele." Tendo em conta que vários dos acusados estão há cinco anos detidos à espera de julgamento - e que é essa a pena mínima para os que forem considerados culpados de pertença a uma organização terrorista -, a maioria dos réus deveria ser absolvida em teoria. "Mas não penso que o tribunal vá ditar veredictos justos", diz Ersöz. "Pelo contrário, a maioria deverá ser condenada a perpétua."